Fim de Ano
Ano vai. Ano vem. Desejos morrem. Desejos nascem. A vida a correr. O plano inclinado. O fim da estrada e a estrada sem fim. Fecham-se portas. Abrem-se janelas. O caminho e os tropeções. As curvas apertadas. Quanto jogo de cintura.
O mapa das dores. O riso e o saber rir. A gargalhada que nos alegra. Tentar aprender o caminho da alegria. Os pequenos projectos. O saber saborear cada dia. A festa do novo dia. Caminhar de novo. Ir com todos e com ninguém. Não ter medo de calcorrear o tempo.
Mais um ano. Menos um ano. Façam as contas como lhes aprouver. Façam o favor de viver. Para quê ter medo do inesperado? O que aparece de súbita maneira é, por vezes, de uma beleza única.
A meia-noite e o nosso meio-dia. As badaladas da ilusão. As praças do mundo cheias de luz, cheias de gente. A contagem decrescente para a idade maior. A maior agonia. As terras sem luz. As gentes sem ano. O ano minguante. A fome que mata a vontade. Os foguetes. As canas e o ruído. Os morteiros. As lágrimas que caem. Um homem que apanha as canas. Os bombeiros em alerta. Bebe-se alguma vida e muita desgraça. O rancho melhorado.
Há quem acorde no dia seguinte e não se lembre de nada. Nem uma vaga ideia lhe povoa o cérebro. «É para a desgraça, é para a desgraça.» A frase que mais se ouviu. «Bebidas maradas.» Diz alguém à cabeceira do quase moribundo. No outro lado no mundo onde a luz é a das estrelas, já, há muito, alguém caminha em busca de água. Um caminho de todos os dias de pé descalço.
A azáfama dos guarda-roupa. Muita “pomada”. Muito “betume”. Muita máscara. Muita laca. Muito gel. Muita operação plástica. A vida presa por cordéis. A música do costume. A diversão obrigatória. A terra cospe fogo em alguns sítios do mundo. A maltosa vai-se safando. Os financeiros a quem pagamos os desfalques, bebem champagne francês. As senhoras dos fulanos compõem os últimos retoques, escolhem as caras jóias para a ocasião. A “festança” continua. Festas que duram o ano inteiro! A falta de vergonha que já cansa!
Limpam-se os restos das festas. Há de tudo naquele chão sem gente. Tudo o que foi expulso, sem remorso, pela desbragada multidão. Só à mangueirada. Só com máscara. Encontram-se alguns sinais de desgosto, lágrimas, pestanas postiças arrancadas, um olho de vidro e um anel de noivado. Um véu de noiva a esvoaçar. A noiva perdida e sem memória. O noivo no altar. Está quase a chegar o Santo António.
No dia seguinte fazem-se contas à vida ou à morte. Os gatos pingados não descansam. Os cemitérios abrem todos os dias. O fogo é fátuo. O silêncio de morte.
Falemos de outras coisas, do primeiro bebé do ano. Do primeiro grito de liberdade. Do primeiro choro. Do primeiro beijo. Que nome vamos pôr à criança? João Maria se for rapaz, Maria João se for menina. «Não se discute mais.» Voz do futuro padrinho.
Esta roda contínua a que chamamos vida!
Tenham um bom ano. Abraços.
«Tu lembras-te de cada coisa. O que foste buscar para falar da passagem de ano!»
Voz de Isaurinda.
«Tinha de falar da vida, não achas?»
Respondo.
«O que eu acho é que não tens emenda!»
Responde Isaurinda e vai, o pano na mão.
Jorge C Ferreira Dezembro/2018(190)
Foi a primeira crónica que li, sua … e adorei … tão, tão real … Obrigada!
Obrigado Ana. Seja bem-vinda. Que bom estar por aqui. Um abraço.
Falar da vida. Falar das muitas vidas. Rir e chorar. Aqui e além. Ricos e pobres. Poderosos ou não. Para todos um novo ano.
Obrigada por estas crónicas cheias de saber. Únicas
Feliz 2019.
Um abraço.
Obrigado Eugénia. O saber é vosso, do modo como fazem o favor de ler o que escrevinho. Abraço
Desculpe, obrigado Eulália.
E não tens emenda mesmo! Por isso és único. Que prazer iniciar o novo ano com a tua escrita. Obrigada. Feliz 2019.
Obrigado Cristina. Espero nunca ter emenda. Abraço
Por isso a nossa tão grande admiração por ti. Abra
Abraço.
Meu querido amigo Jorge, cronista de acontecimentos, sem perder a capacidade de os observar à luz das realidades mais alegres, ou mais tristes, sem perder as duas faces do mundo neste planeta a que chamamos Terra. Mas ” terra ” devia ser sempre um caminho de Esperança donde brotasse o essencial na vida de Todos. Mas não é, querido amigo/ irmão, tal como dizes. Estamos num mundo de muitos mundos. Cada vez mais desequilibrado, a uns sobra a ” soberba “( atitude mais feia ) e outros carecem até do pó dos caminhos, porque estes são só de pedras. Obrigada querido Jorge. Beijinhos <3 <3
Obrigado Ivone, minha amiga/irmã. Tento fazer o que dizes. Tento caminhar contigo. Caminharemos. Abraço
Precioso texto. Tão bom o teu diálogo com a Isaurinda. Que nunca tenhas emenda, é a tua enorme capacidade de escreveres “esta ilusão passageira”. Abraço enorme Jorge.
Obrigado Regina. Quanto a isso de não ter emenda, fica prometido. Abraço
Tanta vida que fez rodopio. A chegar,um novo Ano,para seguirmos em frente.Tenta-se com as passas deixar tudo para trás.A folia é de cristal,a princesa voltará a ser gata borralheira,tudo será normal no dia seguinte…
Um 2019 cheio de esperança.Bom Ano Novo meu muito amigo.Abraço da sempre amiga Célia Maria
Obrigado Célia. Que bom ter de novo aqui os teus belos comentários. Bem-vinda minha amiga. Abraço